5 marias

Paris. 2005-2006.

12.12.07

Aeroporto

Começou na Mercerie e acabou no Terminal 2D.
Taças de kir e duas meninas. Na mesa perto, copos de cerveja e dois meninos. Trinta minutos depois, todos juntos no apartamento deles com a Ivete Sangalo na TV.
Uma delas tinha passado dez meses longe de qualquer manifestação recíproca de afeto homem-mulher e, sim, chega uma hora em que. Bom, a noção do que é carência re-al-men-te se alarga e ignora muitos princípios. Então, ela canta “Poeeeeeeira, Poeeeeeeeeira” no meio da sala, e arranca sorrisos do pretendente. Mas o moço, muito franco-respeitador, começa do nível zero – semanas de mensagens com ‘milhões de beijos minha querida’. Ela, claro, queria saltar as fases, ‘que seja eterno enquanto dure’ dois meses, meu filho! Ele, franco-realista, recusou. Então só restou a despedida (nível 5, para compensar os dez meses 'Os Sertões').
E o que restou foi um sentimento-carência-câncer: “Ele não me quer”, “Eu amo ele”, “Eu vou ligar”, “O que eu faço?”, “Ele é lindo”, Ele, Ele, Ele. Virou amor-platônico.
Chegou o dia de acompanhar uma das amigas no aeroporto. Malas imensas, uma – a de mão - com descarado excesso de bagagem e a carteira cheia de moedas de 1 céntime. Nem para tomar um café em Milão.
– Você não tem dinheiro pra comer?
- Não se preocupem, minha mãe disse que vai ter um churrasco quando eu chegar no Brasil.
La misère! Calçava as botas de inverno (em pleno verão) para economizar na bagagem.
Hora do embarque. Kilometros de piso encerado e pessoas na frente. Rápido!
- O que vou fazer com esta mala? Não vai passar! Ai, Meu Deus!
E, de repente, uma porta se abre (de onde surgiu?) e Ele sai! Ele! O amor platônico! O moço franco-gentil! Ele trabalha no escritório da AIR FRANCE, já era sabido, (mas não no aeroporto!), ele ESTÁ ALI, justo naquele dia, naquele horário e sai de uma porta que, sim, só pode ser cenográfica! Diante das três pobres esbaforidas (e, também, incrédulas), ele faz uso de seu crachá, libera a mala chumbo sem pagamento de excesso, cumprimenta-A cordialmente, sorri (puta merda, ele é lindo) e parte.
Ele pra cá, a amiga pra lá e Ela, no meio, sustentando as pernas trêmulas, usando o chão como apoio.

12.9.07

Invalides

Atravesse a ponte reluzente de anjos. Está vendo aquele prédio? Está vendo aquela cúpula dourada? Dizem que ali está o corpo de Napoleão I. Nem fodendo, diz a amiga. “Eu duvido! Isso é pra pegar turista imbecil. Você paga pra ver a placa. Túmulo porra nenhuma”. Depois de dez (ou doze?) taças de vinho (ou montparnasse? Ou champagne? Ou coca?), tudo junto, tudo quente, com cerejas, salgadinhos esmigalhados, o quê? O quê? Quem? Quem vai ter importância? As cinco amigas estão ali, num piquenique noturno, tomando no bico da garrafa, o último encontro, o derradeiro, o quebra-total, a despedida. As rolhas se enfileiram. A bunda gela no gramado úmido. Xixi! Ali, atrás da moita! Que moita, minha filha? Acreditam e vão todas, apoiando-se. Não há moita. Há um canto escuro e fétido. Fica aí vigiando, disse, com as calças já no calcanhar. O xixi mais espetacular da vida. A torre piscando, Ela mijando. Pisca, mija, pisca, mija. A amiga pisou numa bosta! “Bosta humana!”, grita. Sentam no banco e risos, uma hora da manhã. Pega aí, guria! Lenços umedecidos para limpar a sola bosteada. Sacolas viram pantufas. De manhã, baba no travesseiro, sandálias no lixo. Fedor.

1.8.07

Colchão

Muito mais de meia noite. Sozinha na cama. Olha para as sombras do teto: auréola de luz do abajur. Ela pensa: “Até agora não tive pesadelos”. Suspira e reza. Ela não podia ter pesadelos. Estava sozinha. Podia gritar em vão no meio da noite. A voz não desce sete andares de escadas. Ela só tinha Ela para dizer: Calma, foi só um pesadelo. Dorme. Respira. Reza. Pai nosso. Pai nosso. Dorme. Pensa no pai e na mãe. Já vai amanhecer.
E já de dia, Ela comemora: mais uma noite passou. Já tinha se acostumado a ter pesadelos e não gritar quando a amiga comprou um ‘colchão’ parisiense, (caro e muito fino!) para pernoitar no Cafofo. E ainda insistia no supremo conforto do colchonete: “Está ótimo! Cansada eu durmo em qualquer lugar!”
No meio da madrugada, a opinião é outra: “Que merda de colchão! Que mééérda! Vou devolver esta PORCARIA! Que ódio, eu sinto as lajotas do chão quando me viro".
A partir deste dia, Ela não estava mais sozinha. Em vez de pesadelo e grito, gargalhadas. Um ano de sonhos.

20.6.07

O que não vale a pena descobrir – Parte 2

Ela está feliz. Foi convidada para um Jantar Especial. O chef , e dono da casa, anunciou o prato principal. RIS O QUÊ? Nunca ouviu falar, nunca comeu. Uma carne, com certeza. Mas nem o dicionário, nem o seu Pai, veterinário experiente, sabiam descrever. Contudo, sabia que era caro e raro, assim como outras centenas de ingredientes daquela culinária. No fim, ela se despiu de preconceitos tolos, na verdade, ela não tinha dinheiro para preconceitos tolos, enfim, comeu, repetiu e raspou o prato. Eram amídalas de bezerro.

O que não vale a pena descobrir – Parte 1

Primeira semana no emprego, tarefa: limpar a cozinha. Louça, pia, fogão, armários, chão, mesa e O QUE ESTE TAPETE ESTÁ FAZENDO NA MESA? Ela analisa o tecido, cheira, tateia, observa a estampa, sim, trata-se de um tapete, conclui. Coloca-o no chão.
Segunda semana, cozinha, hora da limpeza! Louça, pia, fogão, chão e POR QUE O TAPETE ESTÁ DE NOVO EM CIMA DA MESA? Coloca-o no chão. Terceira semana, cozinha, louça, fogão e DE NOVO ESTE TAPETE NA MESA? Está imundo e fedido. Coloca-o imediatamente no chão e pensa Puta Merda, Quem está fazendo isso? Um dia, fim do mistério: sua patroa pega o tapetinho para enxugar a louça. Sim, era um pano de prato.

Printemps

Fim do dilúvio. No calendário, pelas regras da França, o mês deve ter sol e flores, mas, no caminho escola-casa-casa-escola, não há nada além de vento, galhos secos e nuvens que atrapalham o sol. Com as roupas de inverno em trapos, Ela insiste numa saia de tecido leve e passa um frio maldito. Já na metade do mês, revoltada, ela não acredita na primavera. As árvores ameaçam mini-mini-brotinhos verdes e neste ritmo, pensa, estarão com folhas em agosto. A temperatura aumenta na mesma lerdice. Mas a natureza tem seu tempo e, de repente, numa tarde de sol constante, alguém fotografa sua barriga branca e ri. Ela ri também. Ao seu lado, na grama perfeita, há uma fileira de panças translúcidas. Uma delas lê, a outra ouve música, a terceira joga as meias longe e enterra os pés no verde fresco. Calor. Bebe água. Molha a nuca. A pele queima, transpira. Corpo mole. Adormece. Silêncio. Não muito longe, há uma estátua branca de uma deusa qualquer e um círculo de tulipas laranjas-avermelhadas.

30.5.07

Causes & Coincidências

Entrou no trem das 17:56 em Saint Lazare. Rotina. Mesmo vagão, banco do canto, mp3 nas orelhas, livro de poesia francesa marcado na pagina 11 com recibo de supermercado (Fran Prix DaGuerre, 1 coca, 1 sandwiche crudités ). A fome batendo e o pensamento na geladeira vazia. Torce por um pedaço da quiche do almoço. Os trilhos balançam as letras, ela não se concentra nos versos. Qualquer palavra é motivo para fugir e pensar na sobremesa da tia, no amigo artista-manco que mudou para a Espanha, nos lençóis que ainda não passou, no projeto de mestrado, se a Fulana já casou e finalmente em: como será o seu próprio casamento? Sim, foi longe demais. Já estava quase em casa. Guarda o livro. O celular vibra. “Amiga” piscando no visor. Atende em português. Um rapaz, ao lado, se emociona com sua fala e, pergunta, sem hesitar:

“Desculpe, eu te ouvi falando português. Você é brasileira?”
“Sim.”

“Eu sou Fulano, francês, mas falo português porque morei no Brasil, na cidade XWZSYH, no Estado FFGHU, perto de HHHI”.
Ela fica sem ar, recupera-se e: “Eu também morei em XWZSYH, no FFGHU, perto de HHHI.
Mas eu estudei lá no ano de XX65”
Ele: “Eu também!”
O trem pára.
“Como a gente não se encontrou antes?”
Descem.
“Você mora aqui?”

Três “Eu também” depois, Ela tem vontade de gritar para Deus: O QUE É ISSO?
Acessa mentalmente o Google: Brasil, 186 milhões de pessoas, 8.456.510 km², 5.560 municípios. França, 63 milhões, 547 028 km², 6.782 communes. Sete dias depois, eles se reencontram no trem, à noite e ao acaso. Coincidência exagerada, absurda mesmo. Parece história de filme. É.

22.5.07

Minha Mercedes

Para se deslocar até Paris, Ela precisava do trem, e para chegar ao trem, ela tinha à disposição uma Mercedes! Sim! Provisoriamente sua, na verdade, a Mercedes da década de 70, mas uma Mercedes quand même! De óculos Jacqueline Kennedy-Onassis, empunhando a Mercedes na estrada, até a estação de trem! Não importa, ela estava dirigindo uma Mercedes a caminho de Paris, ouvindo ‘Je suis deracinée’ no ultimo. E, numa madrugada perdida no orkut, ela se adicionou à comunidade “Desculpe, eu tenho uma Mercedes”. Ela se sentia especial, com “aquele-algo-mais”. Podia passar o mês à lata de ervilhas, mas nada tiraria o seu orgulho de dirigir uma Mercedes na Ilê-de-France! Chegou o inverno e a neve. E a alegria não foi tanta ao manobrar o carro no compartimento do frezer. Vinte quilômetros por hora, muita estrada pela frente, e o tanque quase no fim. Ela tinha a impressão de que, se respirasse um pouco mais forte, perderia o controle do carro, pois a pista era, de fato, de manteiga. Nunca tinha dirigido sob uma tempestade de neve. Nunca sentiu tanta dor no pescoço e nas costas. Nunca sentiu tanto medo de morrer (seria uma morte chique, no entanto) Contando a história às amigas, disse no fim: Ai, que dor horrível! Nunca mais!

17.5.07

Perecível

As aparências enganam e se desfazem às cinco horas da manhã, no meio da neblina e da garoa fina. A blusa preta de lã brilhosa para “ir mais arrumadinha” rasgou na altura das axilas na segunda semana. O crepe nutella-banane, antes, delicia boa, agora tem efeito de pára-quedas no estômago. O metrô, antes, rápido e eficiente, é rotina escura e corredor de rostos com ânsia de vômito. Os prédios históricos, tão bordados, rebuscados, dourados, são paredes sem fim, cor de poça suja, que sufocam o céu e as calçadas, agora muito estreitas para dois ao mesmo tempo. A história dos monumentos, praças, placas, buracos, traças, agora, são repetitivas e enfadonhas. Os novos amigos, simpáticos demais-demais, agora cansam nos primeiros dez minutos (ou segundos). As conversas, sino na cabeça. As máquinas digitais, pentelhas. A igreja esplêndida, entupida, oito mil turistas por segundo. O bairro ‘fofo’, agora é caro, lotado, dez mil gentes passando na roleta. O corte de cabelo, ultra-moderno, caro, aliás, tudo é caro, já está despontado e preso de oleosidade. O queijo, rançoso. A champagne, morna. O café, frio. A peça de teatro, longa. O museu, grande. O vizinho, con. O belo e bom estraga rápido.

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